Uma tarde no Rio Negro

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Na beira do Rio Negro não fazia menos de 30 graus naquela tarde de Abril. Por alguns minutos a chuva caiu me enganando que a temperatura fosse baixar. Percebi que o vapor que subia do asfalto quente contrariava minhas ideias. Suando mesmo parado, já tinha passado pelo Mercado Municipal de Manaus e agora estava na beira do rio, próximo aos pescadores que tentavam vender o que tinha sobrado da pesca. Alguns vendiam 20 Jaraquis por R$10. Conforme o tempo ia passando o preço baixava. Cheguei a ouvir que “agora é 50 por R$10”.  Ao meu lado, encostado no corrimão de pintura comida pela ferrugem da beira do cais, Maranhão, garoto de 19 anos, mas com cara de homem formado. Ele ajudava seu colega banguelo de alguns dentes da frente, que de dentro de uma voadeira de alumínio, ensacava os peixes e lançava para os clientes no alto ao mesmo tempo que gritava que o saco pesado já voava.

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No barco ao lado, Careca, 19 anos, mas com aparência de um garoto de 16, também gritava seu preço. Ali no cais são todos amigos. “O preço do peixe está foda. Ontem mesmo a gente vendeu 8, 10 Jaraquis por R$10. Hoje tem nego vendendo 50 por 10. Assim não dá. E pior, amanhã o preço vai estar baixo igual”, comenta um senhor com décadas de experiência no barco de madeira ao lado, enquanto limpa seu rosto coberto de suor.

O sol, ainda muito quente, e eu ainda insistia em observar a compra e venda de peixes. Careca, lá de baixo, grita para Maranhão que precisam ir buscar sua garota e aproveitar para tomar um banho “do lado de lá” em um flutuante. Deixei a conversa deles se prolongar antes de interromper. Minutos depois intervim: “Cabe mais um nesse barco? Posso ir junto?”. Maranhão não hesitou e topou na hora. Só precisavam lavar o barco e abastecer antes da partida.

Com tudo em ordem, fui avisado pelos jovens marinheiros fluviais que partiríamos em poucos minutos. Corri do outro lado da rua e comprei uma caixa de latinhas de cerveja gelada que durou pouco. Era uma maneira de agradecer o passeio gratuito. Dalí do cais até Cacau Pereira, onde a namorada do Careca mora, na outra margem do Rio Negro, gastaríamos uns 20 minutos sem parar. Todos a bordo, chegou a hora da partida.

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Assim que saímos do cais, Careca sacou a maconha do bolso. Na outra mão, um pedaço de folha de caderno – me fez relembrar meus dias de colegial. Sempre que Maranhão acelerava um pouco mais, Careca pedia para ir devagar até terminar de enrolar, depois, ai sim, poderia acelerar mais. Chegando no meio daquelas águas negras, não aguentei e pedi para pararem. O sol nos obrigou a dar um pulo na água. Antes mesmo do meu corpo afundar todo no rio, me veio uma pergunta à cabeça: “Se esses moleques que acabei de conhecer partirem? Terei que nadar mais de uma hora até a margem mais próxima. Mas qual delas é menos longe?” Desde pequeno, sempre que ando de barco tenho em mente esse pensamento. “Se esse barco afundar, para que lado vou nadar?”.

Cabeça fresca e de volta no barco – sorte que não me deixaram lá – fui apreciando a paisagem. No fundo, a AM-070 corta o rio por uma ponte estaiada. Mais 15 minutos em linha reta e chegaríamos a Cacau Pereira, distrito do município de Iranduba, com pouco mais de 10 mil habitantes onde crianças brincavam na beira da água como se estivessem no quintal de casa. A trilha sonora é brega em alto tom.

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Para chegar até lá é preciso entrar em um braço de Rio.

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Cruzando as águas do Rio Negro paramos algumas vezes para tomar banho e conversar na sombra das árvores na beira no rio.  Maranhão me conta o motivo que o fez parar desse lado do Brasil. Era 157 no Maranhão – artigo do código penal que se refere ao crime de assalto à mão armada. “A maior quantia que consegui roubar de uma vez foi R$28 mil. Queria ter feito um maior e ficar de boas agora”. Agora Maranhão acorda de madrugada para trabalhar. Sai para pescar e vender os peixes na beira do cais do mercado da cidade de Manaus. Ele está pagando uma promessa que fez. “Prometi que se sobrevivesse iria parar com tudo”.  Há alguns anos, em um assalto, tomou 3 tiros de pistola .40 e teve que fugir do hospital para não ser pego. Saiu do Maranhão e foi para Venezuela onde ficou mais de uma semana tratando o dreno de maneira caseira com ajuda de amigos. Em seguida, quando foi a um médico descobriu uma hemorragia no seu pulmão. Teve quer ser internado mais uma vez. “Quase morri”.

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Depois de algumas horas no rio voltamos para Manaus. Paramos e o Peruano pulou para dentro do barco. Jovem, com aparência de pouco de 30 anos, ele era um garoto de poucas palavras e sorriso tímido. Tinha uma mochila de pano com alças de nylon que apertava suas axilas. Com chinelo nos pés e bermuda, falava somente o necessário com um sotaque bem carregado.

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Agora éramos 4. Com direção certa, Maranhão tocou a voadeira por mais alguns minutos, beirando a margem do rio, e entrou em uma região de casas de palafitas, ou casas flutuantes. Estávamos entrando na área vermelha, como me explicou Careca. “Aqui é da pesada. Estamos em Panair, beco da bomba. Quando os homi chega é só bomba”, ri.

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O barco teve seus motores desligados poucos metros antes da casa em que iríamos parar. Ao lado, uma placa dizia para não encostarem barcos ali, ao lado de um desenho de um revólver. Todos os 3 desceram. Eu os segui. Entraram no meio dos barracos e eu fiquei ali sozinho. Em poucos minutos apareceu o patrão mais eles. Balança na mão direita e pacote de maconha na outra.

-Quer quanto, mano?

– Ele 10 e eu 20, respondeu ligeiro.

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Pesado, acertado e pago, pulamos mais uma vez no barco e saímos de lá tão rápido quanto chegamos. Mais adiante, paramos em baixo de uma ponte, não muito distante do nosso ponto de partida. Na sombra do concreto Maranhão conta: “Aqui conheço todo mundo. Os caras são do FDN.” FDN é a maior facção da região Norte do país, chamada Família do Norte e está em pé de guerra com o PCC, facção paulista, Primeiro Comando da Capital. “Parei com o crime, mas já me falaram que se eu precisar, é só pedir a pistola deles. Sou respeitado aqui, Paulista. Você achou o cara certo”, sorri.

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Careca brinca: “Sorte que eles não perceberam que você era paulista. Não gostam do PCC”. Sorri e respondi: “sorte mesmo”.

Alguns minutos depois, motor ligado, chegamos em uma espécie de estacionamento de barcos. Dalí até onde tudo começou foi preciso mais 30 minutos caminhando. Maranhão me acompanhou até lá, onde peguei um moto-taxi em direção ao centro da cidade.

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Nos despedimos, trocamos contatos. Outro dia falando com ele sobre a vida, ele me contou: “Já sai com muito mais de 55 mulheres. Por aí, esses dias foi mais umas 10 kkk. Não estou de bobeira não”.

 

 

Uma resposta em “Uma tarde no Rio Negro

  1. Adorável texto,incursão no Brasil profundo, coisa que muita gente nem imagina que existe; O Rio Negro, andei tantas vezes por lá. Encontrei dois ou três remanescentes do que foi um povo inteiro. Sua escrita me fez rever tudo isso em flashes guardados pelo tempo. Enorme abraço. Apareça;

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