Corações e cardiologistas de Jaime

A casa de máquinas é considerada o coração do barco. Se ela parar, o empurrador para também. EMI_5577

Chefe das casas de máquina Fernando Lima. Na hierarquia do barco, ele fica abaixo somente do comandante. EMI_5495EMI_5563  EMI_5553 EMI_5548 EMI_5535 EMI_5529 EMI_5527EMI_5518  EMI_5558

Heber Alencar, Fernando Lima, Sebastião Belé, Fernando de Moraes e Luiz Fernando Paiva, os ‘cardiologistas’ do Jaime Ribeiro

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O barco não navega sem a casa de máquinas. Mas a peça fundamental é o cozinheiro, ainda mais do que o comandante.

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Décimo dia: a chegada ao porto de Itacoatiara

A ansiedade da tripulação na noite anterior ficou mais clara quando a notícia de que o velho Jaime Ribeiro já navegava por águas de Itacoatiara. Não que os marinheiros já não soubessem disso pela experiência de vida. Me lembro que batendo um papo com um deles, ao lado de fora da embarcação, enquanto fumávamos um cigarrinho de palha, ele confessou. “Essa noite são poucos os que dormem”. Nesse momento passávamos por Borba, um vilarejo de luzes coloridas à beira do Madeira que tinha uma igreja de 4 entradas, 8 torres e uma imagem de São Benedito de mais de 7 metros de altura.

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A maioria dos marinheiros era de Itacoatiara e quase todos sairiam de folga nos próximos dias. “Isso mais parece uma fuga em massa do que uma troca de turno”, brincou o comandante Paulo ao ver a escala de quem saia e quem entrava. Tinha gente que já estava navegando por mais de 30 dias.

Era 8h30 da manhã quando o empurrador começou a manobra para atracar. Já estávamos nas águas do gigante rio Amazonas desde a hora em que o sol tinha se levantado. As malas já enchiam o convés principal. Chovia bastante, mas o calor era constante. Na proa do comboio um grupo de marinheiros já se posicionava para receber as cordas dos funcionários do porto e amarrar as barcaças. Estava chegando ao final o trabalho daquela turma. Assim que o comboio está bem preso, eles desfazem a amarração e não são mais responsáveis por aquelas 20 barcaças cheias de soja.

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Conhecida pelo seu enorme porto fluvial, Itacoatiara, é a terceira cidade mais populosa do Amazonas e sua economia gira em torno do porto. O nome, de origem indígena, significa ‘pedra pintada’, graças as inscrições em algumas pedras no rio Urubu, próximo à cidade.

Desembarcamos e fomos direto para o porto flutuante. Basicamente é uma base, no rio Amazonas, onde as barcaças de soja são descarregadas, seja diretamente para um navio transatlântico, se não tiver chovendo, ou para um galpão.

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Já em terra firme, passando pelo jardim da empresa que administra o porto, me deparei com a cena abaixo. Olhei para os lados e, discretamente, troquei de lente. Meti a luz, e com cautela, atravessei um arbusto que impedia que eu fizesse a foto. Tinham algumas flores que não queria pisar. Ao meu lado o gerente operacional me observava com olhos de “não faça isso, por favor”.

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Ainda sem jeito pedi para ele se eu poderia passar de uma última barreira de plantas. Sorrindo me respondeu: “poxa, você não fotografou nenhuma onça a viagem toda e agora quer fotografar a estatua no nosso jardim?”

Respondi que sim com um sorriso amarelo como a pele da felina.

Partimos para Manaus, 288 km de Itacoatiara.

Nono dia: vida dentro do Jaime

A lataria da embarcação tem que estar sempre reluzente. A limpeza é um dos trabalhos obrigatorios à partir da segunda metade da viagem. Um grupo de mais de 10 homens juntos por mais de 30 dias não significa de maneira alguma sujeita ou caos.

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Aqui o trabalho é basicamente dividido em 5 partes: comando, cozinha, maquinário, faxina e observação do comboio. Hoje foi feita a faxina. “Temos que entregar o empurrador limpo para a próxima equipe que vai embarcar em Itacoatiara”, explica Luciano Oliveira, marinheiro há apenas 60 dias.

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Durante nossa descida grande parte do tempo ficamos sem sinal de celular. A única forma de comunicação além do radio é a televisão. Outro dia estávamos assistindo jornal e a TV perdeu a sintonia. Na mesma hora alguém veio e puxou uma corda que vinha da porta e o sinal voltou ainda melhor. Com o balançar do barco e a mudança de sentido é comum a parabólica, presa no convés superior, se deslocar. Para marinheiro de primeira viagem, como eu, acabaria ali a minha felicidade em frente a telinha. Mas não. Já conhecido entre outros marinheiros, a gambiara é um trabalho de deixar qualquer técnico de TV a cabo com inveja. O ‘gato’ é formado por roldanas e uma longa corda que passa em volta da antena e, conforme eles puxam-a, ela gira a antena. É tiro e queda.

Há duas noites eu era o mais próximo da corda suja quando a TV começou a chiar. Olharam para mim e eu, confiante no que já tinha visto, tomei a frente. Perfeito. O que estava com chiado, agora perdeu totalmente o sinal. Riram de mim.

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A hora que passa a novela ‘O Rei do Gado’, quem estiver de folga ou passando pelo convés principal, onde sentamos para comer, descola um espaço e prega os olhos na televisão.

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Além da televisão a outra coisa que deixa a tripulação maluca é quando a embarcação passa em frente a algum vilarejo onde tem sinal de celular. De um lado se ouve “domingo o pai vai te levar no parque”, do outro, “saudades de você também meu amor”. Hoje, passamos em frente a Novo Aripuarã por volta do meio dia. Não tinha um ao meu redor que não já estava pronto com o aparelhinho nas mãos. “Aqui é só sinal de telefone, não tem internet. Anota no papel seu facebook que hoje de madrugada, quando passarmos por Nova Olinda do Norte, te mando o convite. Amanhã cedo, quando você acordar vai estar lá”.

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O coração mecânico da embarcação bate 24 horas por dia sem parar um minuto. O empurrador tem 3 hélices com mais de dois metros de altura cada. Os responsáveis pelos ‘batimentos cardíacos’ dela são cinco marinheiros que se revezam a cada 3 horas para tomar conta do motor. “Aqui não tem reserva, todos nós somos titulares”, brinca Heverton, condutor motorista.

Oitavo dia: dia-a-dia no velho Jaime Ribeiro

Jaime Ribeiro não tem seus motores desligados sequer um minuto. A cada 4 horas muda o “piloto” e a cada 3 o responsável pela casa de máquinas. Eles representam os extremos do barco. Cabine de comando é refrescada com ar condicionado e frigobar e tem visão plena do rio. Na casa de máquinas a temperatura pode chegar até 50 graus Celsius. No comando é possível conversar tranquilamente, lá em baixo, nos porões, é obrigatório o uso de capacete e protetor de ouvido. A distância entre os dois ambientes é de exatamente 6 andares ligados por 66 degraus.

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O comandante Paulo Menezes, já completou seus 40 anos navegando pelos rio do Brasil e da América do Sul. Na frente do Jaime Ribeiro está desde 2007.

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Marcada para as 16 horas nossa conversa, Seu Paulo, como é chamado o amazonense de Manacapuru, nos recebeu e contou um pouco da sua história. “Eu já recebi convite dos hermanitos para trabalhar na Argentina, no Rio da Prata, na Colômbia. Essas horas daqui não saio mais. Como posso deixar a família? Se eu fosse jovem nem estaria mais aqui. Lá eu ganharia em dólar”, conta com sua voz alta e roca.

Confira o vídeo da entrevista com o comandante no link abaixo.

http://revistagloborural.globo.com/Colunas/caminhos-da-safra/noticia/2015/04/caminhos-da-safra-navegacao-pelo-rio-madeira.html

Depois de conversamos com Seu Paulo, ele nos liberou uma voadeira, barco de alumínio com motor de polpa, para fazermos algumas imagens com um outro ponto de vista. Aproveitei para brincar um pouco com a Gopro que peguei emprestado.

Claro que fotos não podiam faltar. O Rio Madeira foi batizado assim pelo fato dele ainda ser geologicamente jovem. No período de cheia a água sobe e destrói parte de sua margem. Como ela ainda nao é forte e nao está “acostumada” a isso galhos e ate arvores inteiras acabam descendo o rio. No Amazonas, por exemplo, não acontece isso porque ele já é um senhor. O Madeira, no mundo, um dos que mais ‘sofrem’ com isso.

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Sétimo dia: primeira noite de marinheiro de primeira viagem

Porto Velho ainda estava escura quando entramos no taxi para o porto. Uma curiosidade, se é assim que posso dizer, é o fato da cidade ser extremamente escura. Percebi que nas ruas apenas um lado da via tem iluminação pública. “Aqui as pessoas não ligam para isso”, comentou o taxista quando eu perguntei. Respondi que eu achava que na verdade quem não ligava para isso era o prefeito e não a população. Ele pensou por alguns segundos e respondeu: “acho que é isso mesmo. Sem vergonha”. Achei mesmo gozado a população não ligar para isso.

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Chegamos no porto no horário marcado, 6 da manhã. Pegamos uma carona em um outro empurrador para chegarmos naquele que viajaríamos. Jaime Ribeiro está atracado do outro lado do Rio Madeira, só esperando as últimas 3 barcaças serem carregadas e anexadas. Como dito anteriormente, cada uma delas demora em média 3 horas para completar, ou seja, atrasos à vista. Choveu a noite passada toda. Assim como o empurrador Sabino Pissollo, Jaime Ribeiro tem capacidade para empurrar, rio abaixo ou rio acima, um comboio de 25 barcaças, total de 50 mil toneladas, mas ele só navega com 20, por ordem na Marinha. O comboio que embarcaremos é o segundo maior do mundo, perdendo apenas para os americanos do rio Mississipi.

Jaime Ribeiro foi genro de André Maggi, proprietário da empresa Amaggi.

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Visto de longe o comboio é muito grande. Visto de perto, ele se torna um monstro.

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Conforme as barcaças vão chegando uma equipe do porto vai fazendo a amarração em X, prendendo-as com cabos de aço da grossura de uma bolinha de golf. Aqui, nesse empurrador com 20 barcaças, é usado mais de um quilômetro de cabo. Os homens trabalham duro em turno de 7 horas. O trabalho nunca para.

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Com quase 12 horas de atraso finalmente o empurrador está pronto para descer as 605 milhas náuticas, equivalente a 1.121 quilômetros. Uma vez tudo pronto, o reboque auxilia na manobra e começa a viagem de quase 3 dias rio abaixo.

Com poucas horas de navegação a noite cai e o comando começa a ser feito por radar e carta náutica digital. Cada um em uma tela. Quando elas não são suficientes, o comandante usa o farol que mais parece a luz do Batman iluminando a beira do rio.

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A primeira noite de marinheiro de primeira viagem chegou.

Sexto dia: a chegada da soja em Porto Velho

Tínhamos entrevista e visita marcada para a tarde de hoje em Porto Velho, ou seja, tínhamos que chegar até a hora do almoço. Deu tempo. Como sempre, partimos cedo.

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Ali nos despedimos de Tadeu, nosso motorista que gosta de moda de viola e reggae. O único problema é que quando toca Bob Marley ele não enxerga mais as lombadas. Vai saber. Fiquei preocupado e o aconselhei a ouvir mais Tonico e Tinoco. Aliás lhe entreguei um USB cheio delas. Rodrigo não o verá mais, eu o verei semana que vem quando faremos o segundo trecho do trabalho. Subiremos de Cuiabá até Santarém, mais de 1700km estradão à fora. Aja moda de viola.

Fomos deixar nossas malas em um hotel que Rodrigo conhecia. O hall do hotel era grande e vazio. No fundo um recepcionista afogado pelo balcão não nos viu entrar. Larguei minha mochila no chão para fazer uma foto do cenário. Quando me dei conta, um “mordomo fantasma, vestido de cinza, já tinha carregado minhas roupas.IMG_0818

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Fichas preenchidas, malas no elevador descobrimos que o hotel não tinha internet. Corremos para o vizinho.

Durante a tarde conheceríamos o Porto Público de Porto Velho. Passamos o dia seguindo o gerente do lugar. É estranho, mas ele parecia o filho do Milton Neves com o Datena. Aquele tipo meio toro forte de cabelos grisalhos, imponente. Pior foi ele falando o que eu tinha que fotografar. Imagine como nós fotógrafos adoramos isso. Sem contar que ele falava no celular dirigindo uma caminhonete cabine dupla branca a 80km/h dentro da cidade. Vai saber, deve ser o rei do barco. Cada pé de café seu ele amarra um barco com uma boiada e ainda sobra para a invernada.

No porto, conhecemos como é feita a descarga da soja e em seguida, como as barcaças são carregadas. Aqui fechamos a primeira etapa da nossa viagem que começou em Campo Novo de Parecis e Sapezal, região oeste do Mato Grosso e termina agora no porto de Porto Velho, onde a carga de soja sobe de barco via Rio Madeira até Itacoatiara. Lá os transatlânticos levarão a soja para a Europa e Ásia.

O sol nesse dia, não muito diferente dos outros, estava castigando a equipe. Eu e o Rodrigo na beira do Madeira.

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O esquema de descarga dos caminhões e carga das barcaças é simples. Depois de fazer fila e esperar, os caminhões passam pela primeira parte do processo. Ali são recolhidas amostras da soja para analise para ver se o mesmo produto que saiu do produtor chegou ao destino final. Pode acontecer da soja ser trocada, alterada ou até misturada estrada a fora.

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Depois de feita a analise o caminhão vai para o tombador. É a parte mais impressionante. Com a orientação dos operários do porto, o carreteiro estaciona o caminhão em uma esteira que será levantada em forma de modo a formar uma espécie de rampa. A cabine do caminhão chega a ficar uns 30 metros de altura, enquanto que a traseira quase encosta no chão. Assim os grão são todos despejados.

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EMI_4719O que cai no chão é varrido e juntado ao restante.

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EMI_4669Seguindo por esteiras a soja é levada até as barcaças, espécie de container flutuante. Cada uma delas, leva até 2 mil toneladas, o equivalente a 50 caminhões bi-trem. Segundo o pessoal do porto um compartimento desse demora em torno de 3 horas para ser carregado. Isso quando não chove e o trabalho tem que ser interrompido.

EMI_4546O coletivo de barcaça é comboio. Um comboio é levado por um empurrador. Como se fosse uma locomotiva hídrica que empurra ao invés de puxar.

Depois de um dia longo de trabalho, saímos para jantar em um restaurante que o Rodrigo tinha sugerido. Era domingo, pegamos um táxi e fomos salivando comer um peixe na beira do Rio Madeira. Fechado. O motorista nos sugeriu um outro restaurante. Fechado também. Terceira opção, vazia e escura. Acabamos nos rendendo uma barraca/restaurante em uma praça cheia de gente. No anuncio do lado de fora dizia que vendiam picanha na chapa. Antes tivesse fechado.

Quinto dia: passando por buracos para chegar em Rondônia

Vilhena, Rondônia. “Longe é quando você está parado. À partir do momento em que você sai, já começa a ficar perto”. Essa foi a resposta do nosso motorista, Tadeu Roberto Antunes naquela manhã. Com mais de 30 anos de estrada, Tadeu já ‘puxou carreta’, como eles mesmo dizem, por quase todos os estados do Brasil, sem contar outros países latinos que ele se orgulha de falar. “As argentinas são frias. Bom mesmo é lá no Chile. Na fronteira com a Colômbia conheço uns policiais…. e assim vai”.

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Acordamos cedo na cidade que faz fronteira do Mato Grosso com Rondônia. Nosso plano era chegar em Porto Velho ainda no mesmo dia, quem sabe até anoitecer ou até o caminhoneiro dizer que não aguentava mais. Bom, com a pouca experiência que eu adquiri viajando e conversando com alguns deles, imaginei que a segunda alternativa seria quase impossível. Ele aceleraria, mas, acho eu, não pediria para parar. Para chegar até nosso destino final, teríamos que atravessar o estado inteiro, mais de 700km em um dia. Com o asfalto péssimo, nossa viagem se tornava um pouco mais perigosa e mais longa. Diferente de Milionário e Zé Rico que “nessa longa estrada da vida, vou correndo e não posso parar”, tivemos que parar.

A BR 364 é única ligação rodoviária entre Cuiabá e Porto Velho, em torno de 1500kms de estrada recheada de buracos, crateras e caminhões quebrados. Não tem sequer uma pessoa que elogie esse trecho, nem mesmo o borracheiro Edson de Oliveira, que tira seu sustendo da “desgraça alheia”. Quando perguntado se a reforma da BR não afetaria o seu lucro afirmou que não, porque essa BR é a única via para a capital de Rondônia. No entanto, “a gente não pode querer só para a gente, tem que ter melhoria para quem está trabalhando na estrada também”.

Nossas paradas deveriam ser rápidas para almoçar e, eventualmente, tomar um lanche no meio do caminho. Claro que isso não aconteceu, ainda mais depois que soubemos que nossa partida de Porto Velho seria somente dali dois dias. Tínhamos tempo. Daria para conversar com pessoas que vivem e trabalham na beira da estrada.

Pouco antes de cruzar a Ponte do Rio Jamari, no município de Alto Paraiso, RO, a estrada estava bloqueada. Descemos do caminhão e fomos ver o que estava acontecendo. Na verdade, era somente uma obra de restruturação da ponte.

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Sentado na sombra, com chapéu e bota de boiadeiro, estava Aparecido Cruz, um jovem de 28 anos de Presidente Médici, RO. Com um monte de CDs na mão, ele estava esperando que a fila aumentasse para poder promover a dupla sertaneja que ele “estava empresariando”, Moraes e Montenegro. Alguns meses atrás ele vendia água de côco na beira da estrada. “Eu ganhava entre R$ 500 e 600 por semana. Agora, com esses CDs já cheguei a ganhar até R$ 1000. Melhor, né?”

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Ao som de Sergio Reis, estamos de passagem, “abre a porteira, conforme for para pernoitar. Se a gente é boa, hospitaleira, a comitiva vai tocar. Moda ligeira é uma doidera”.

Dormimos em Ariquemes, RO.

Quarto dia: “esse motorista passou a noite lá no mesmo posto do que eu. Acho que o vi”.

Ontem a noite fomos jantar e pegamos um taxi. O motorista era um rapaz jovem cheio de energia que acelerava um carro velho na ansiedade de nos deixar logo para fazer a próxima corrida. Nossa corrida seria curta. Do hotel em  Vilhena, divisa de Rondônia com Mato Grosso, até o centro. Aquela noite renderia bem, afinal estava tendo uma festa a alguns quilômetros dali, na beira da BR364. A corrida custava R$ 30,00. Jantamos e voltamos para o hotel. Na manhã seguinte pedimos um taxi para chegar até o caminhão. Por conhecidência o motorista era o mesmo, Marcelo (acho eu). Quando entramos no carro ele nos avisou. “Trabalhei a noite toda. Fiz a última corrida agorinha mesmo. Teve acidente na pista”. Na hora ele abriu o celular e mostrou a foto de um corpo. “Vão de moto, bebem e não querem pagar R$ 30,00 para ir de taxi. Olha o que acontece”. Descobrimos que ali na frente um caminhão se envolveu em um acidente com uma moto. Três mortos: dois motoqueiros e o carreteiro. “Aqui isso é normal”, comenta um passante curioso na beira da estrada. Tadeu, nosso motorista, comenta: “esse motorista passou a noite lá no mesmo posto do que eu. Acho que o vi”.

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Centenas de quilômetros à frente paramos em um posto de gasolina. O chão de terra batida e o cenário de cinema. Segundo o borracheiro que conversamos, o terreno alí é chocolate”.

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Mais tarde a luz baixou e de dentro do caminhão, onde passamos muitas horas hoje, registrei-a.

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Terceiro dia: “Sou neste mundo um pelegrino”

A ideia hoje era passar o dia na estrada e viajar por volta de 450km. Por isso pulamos cedo da cama. Saindo de Sapezal, MT, viajariamos até Cacoal, já no estado de Rondônia, mas antes disso tinhamos um personagem para entrevistar e fotografar. As  7h30 da manhã ele já estava na recepção do hotel para nos mostrar sua lavoura de milho. Vestido com uma camisa polo rosa, que mostrava bem sua rotina de academia, o jovem nos acompanhou até sua pick-up. Ao som de sertanejo universitario, percorremos uns 7 km até lá, o suficiente para me deixar com frio na barriga e com os poucos cabelos que tenho de pé. Não sei se ele estava com pressa ou isso é comum por essas bandas de cá, mas hoje descobri a potência dessas caminhonetes cabines dupla. Resumindo, pé na tabua à 140km/h sem cinto em uma estradinha saindo da cidade.

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Mesmo depois dessa descarga de adrenalina logo cedo, não perdi a fome. Assim  que cruzamos a fronteira do Mato Grosso com Rondônia paramos para abastecer o caminhão e nossas barrigas em Vilhena.

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Descendo da carreta ouvi alguém cantando a plenos pulmões. Era um rapaz sentando em um banco de madeira com um livro nas mãos e uma mala nos pés. Ele estava ali há três dias sem comer esperando uma carona para voltar para sua cidade natal. Achei exagero ele ainda ter aquela força na voz de barriga vazia há mais de dois dias, mas enfim, resolvi não discutir. Mineiro de Belo Horizonte, Manuel Ferreira de Aquino Neto é ex funkeiro e hoje “prega a palavra de Deus pelo Brasil”. Ele estava vindo de Porto Velho. Claro que a primeira coisa que perguntamos foi se ele poderia cantar um funk para nós. O silêcio de alguns segundos pareceu uma eternidade. Até pensei que ele iria cantar, porém, com um grande sorriso branco contrastando com sua pele negra, pediu desculpas e negou nosso pedido.

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No entanto disse que poderia cantar um hino da trilha sonora do filme  Titanic, mais precisamente, do momento que o navio afunda. Segundo Manuel, durante a cena da tragédia os músicos tocavam o hino “Cidadão dos Céus”. Titanic  afundou em sua viagem de estréia nas águas geladas do Atlântico em abril de 1912.

Por alguns instantes ele nos mostrou sua habilidade como músico. Agradeci e caminhei até o caminhão para deixar meu equipamento. Na volta, fiquei sabendo que um caminhoneiro que estava ali por perto foi falar com ele. Ambos são da Congregação Cristã no Brasil. O mineiro de sorriso largo e bom de conversa nos deu a notícia: “Deus tocou no coração do moço e ele vai me levar até Cuiabá”, pouco mais de 750km de onde estávamos. Como dizia o músico e hippie Ventania, “rodoviária de maluco é posto de gasolina”. Ao me sentar na mesa com Rodrigo, meu parceiro de estrada, chegamos a conclusão: esse caminhoneiro foi o “Cidadão dos Céus” que apareceu Manuel.

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Segundo dia: sol e buracos

Ainda em Campo Novo do Parecis, MT,  demoramos para achar a saída da cidade sentido Sapezal, onde faríamos duas entrevistas e passariamos a noite. Depois de muitas informaçoões desencontradas, paramos em um posto de gasolina e conhecemos Gabriel Foss, à esqueda, de Bariloche e Ricardo Saavedra, de Buenos Aires. Eles tinham se conhecido há dois dias. Ricardo, aparentemente com mais experiencia de estrada, já deu aula de história e foi até tecnico em informática. Ele está há mais de dois anos nas estradas brasileiras com sua inseparável bicicleta e seu violão mal preso no bagageiro.  Gabriel, não parava de repetir que tinha acabado de comprar sua bicicleta, por apenas R$ 100. “A estrada nos traz o que temos quando somos criancas. Aqui não me apego a nada, sou livre e feliz. Ajo com o coração, não com o bolso”.

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Partimos sentido Sapezal.

Seguindo pela MT-235, é impossivel não ficar impressionado com a quantidade de buracos na estrada. Logo depois de passar pela reserva indígena Utiariti encaramos um dos piores trecho de estrada até Porto Velho. Caminhões e carros trafegam pela contramão para evitar as ‘panelas’ na estrada e a velocidade é limitada pelas crateras.
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Ainda no mesmo asfalto que me fez pensar na superficie da lua, avistamos de longe um enorme caminhão atravessado na pista. Era a carreta, recém carregada, de Walter Luz da Silva. Um garoto de 27 anos que mais parecia ter seus 18. Assim como nós, seu destino era o porto de Porto Velho.
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Walter e Sebastião Adir da Silva, fariam a viagem juntos, partindo da Fazenda Céu Azul, há pouco mais de 10 kilometros do incidente. “Acho que foi embreagem que quebrou. A hora que reduzi para passar os buracos, o caminhão travou”, explica o garoto.
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A MT-235 não é só feita de buracos.  Logo após deixar-mos o território indígena, fomos contemplados pela beleza nas águas cristalinas do Rio Papagaio.
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Já em Sapezal, pouco mais de 100 kms de Campo Novo do Parecis, visitamos a Fazenda Santa Rita. Alí é plantado milho, soja e girassol. Uma pena que as flores amarelas só aparecem à partir do mês de maio. Mesmo assim, a paisagem é única e os caminhos por entre as platações são interminaveis.
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Lá entrei em um velho ônibus que foi muito tempo usado para o transporte dos trabalhadores rurais. Abandonado há anos ele me serviu de refugio do sol quente
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