Logo na entrada da Polícia Federal, no Aeroporto Internacional de Guarulhos, observei um jovem negro vestindo uma camiseta verde e vermelha com ar de desesperado. Pensei que ele pudesse ser parente de alguém preso a alguns metros de onde estavamos.
Despretensioso perguntei de qual time se tratava ela, colorida. Não era de time nenhum. Observei nele um sotaque carregado ao tentar me responder. Falava francês. Era de Conacri, capital da Guiné, um dos países recentemente devastados pelo vírus do ebola. Ele não perdeu ninguém da família.
Abdul, me explicou que seu irmão, ‘Le Petit’, como ele o chama, estava preso no Conector da Polícia Federal há quatro dias e que já tinha precisado de assistência médica. “Ele tem visto brasileiro e reserva em um hotel”. Uma diária em um dormitório nos fundos da zona leste da cidade até ir para Cascavel, no Paraná
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Enrolando em uma manta para se proteger do frio, ele fica próximo da janela. Ali, alguns livros em francês. Zidane, craque da Copa de 1998 e 2006, dominava uma bola de futebol na capa dura de um deles. A vista da janela é limitada. Tem como paisagem um canto do aeroporto. Só um entre os 14 aqui dentro não é negro.
Le Petit
Ao fundo um banheiro feminino e um masculino. Entre eles um bebedouro prateado. Dentro, pendurado nas divisórias de pedra, roupas secavam. O cheiro de suor é quebrado pelo produto de limpeza.
Na frente, perto da porta, alguém tenta pronunciar os nomes árabes dos presos com um marmitex em uma das mãos e uma lista de nome na outra. Pegam, mas não comem. Vem também um suco de caixinha. Para todos é feriado de Ramadã e só se pode comer depois que a luz do dia se vai. Ele são muçulmanos.
Ao lado da porta cobertores coloridos forram o chão. Fotografei ao fingir mandar uma mensagem de texto do celular. Dormem um ao lado do outro, como em um acampamento de adolescentes. Nas cabeceiras, que não existem, agasalhos são usados de travesseiro. Na parede, quase todas as tomadas recarregam aparelhos de celular. O Wi-FI é grátis. Falam com parentes via internet.
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Fazendo o caminho inverso daqueles que chegavam do exterior carregados de bagagens, começamos pela esteira de malas, depois passamos pela verificação de passaportes até quase as salas de embarque. Contei mais de cinco placas indicando que estávamos na contramão do fluxo.
A repórter Fabíola Perez, eu, o assessor de imprensa e mais uma delegada. Eles todos com distintivos da PF aparente. Sorridentes e prestativos. Estavam acompanhando jornalistas.
Bloquinho nas mãos e celular no bolso, franzi a testa parecendo sério ao apetar a mão de todos. Caminhamos por 15 minutos até chegarmos em uma sala abafada onde, na porta, funcionários conversavam e mexiam no celular. Era expressamente proibido fotografar lá dentro.
Em um ambiente de piso frio de pedra, todos os olhares voltam para nós. Me senti entrando em um zoológico. O cheiro de suor era forte. O assessor fez um sinal querendo dizer, ‘venham, eles estão aqui. Olhem só’. Meio constrangidos, perguntamos pelo Le Petit. Tínhamos o nome dele completo.
Enrolando em uma manta para se proteger do frio e de cabeça meio baixa ele saiu de perto da janela e chegou próximo de nós. Nos apresentamos. Conversamos. Ele tinha tentado entrar como turista e foi colocado na sala fria. Não acreditaram. Mas quem acreditaria?
Durante nossa conversa, mesmo que rápida, ele foi ganhando confiança. Segurava o tempo todo um algodão contra a veia do braço esquerdo, como se tivesse acabado de tirar sangue.
Fomos interrompidos por um funcionário com um copo descartável de água e uma aspirina. Foram para perto da janela. Ele tomou o remédio. Eu fotografei. Ninguém notou. “Estou com dor de barriga e no coração”, justificou Le Petit.
Formado em sociologia estagiava no Banque Islamique de Guinée. Depois da epidemia de ebola as coisas ficaram difíceis. Ninguém mais queria ter contato físico com ninguém. Resolveu vir atrás do irmão. “Tenho emprego garantido no Paraná”.
Desde 1997 qualquer imigrante que chegue no Brasil, mesmo que sem documentos, poderá ser acolhido de acordo com a Lei do Refúgio.
Le Petit
No começo da conversa ‘Le Petit’ insistia que vinha visitar o irmão. Mais adiante, tive a oportunidade de lhe falar sobre a lei. Ele abriu um sorriso branco que contrastava com sua pele negra. Baixinho, pouco mais de 1,60m, me olhou discretamente de baixo para cima. Senti que ele ganhou esperanças. “Não estou doente”, falou baixo. “Percebi”, respondi.
Combinamos que, na entrevista com o delegado, ele falaria que era refugiado. Que ainda fugia do ebola. Ele sorriu. Topou. Era terça-feira, 23 de junho de 2015. Ele não sabia quando chegaria essa hora. O que estava há mais tempo preso, completava 7 dias. Ele apenas 4.
Fomos conversando para perto da janela e falei para Le Petit e um outro jovem que estava fotografando-os. Ambos concordaram e me ajudaram na discrição. Fotografei-os.
Alguns minutos depois, eu e Fabíola tivemos que sair da sala. Deu o tempo. Dessa vez fizemos o caminho na mão correta, como qualquer viajante faz. Barreira da PF, DutyFree, esteira de malas, desembarque. Só não tínhamos passaportes nas mãos, nem roupas nas malas.
Exata uma semana depois, ouço um barulho vindo do meu computador. Relutei em abrir. O nome completo de Le Petit piscava na tela. Atendi meio disperso. Estava concentrado em outra coisa. Era terça-feira, dia 30 de junho.
“Estou livre no Brasil. Meu irmão está vindo no aeroporto me buscar”. Me desconcentrei do que estava fazendo. Meus olhos encheram d’água. “Ganhamos”, brincou.
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Hoje, terça-feira, dia 07 de julho, 22h30. Acabo de receber uma ligação do Le Petit via facebook. Eu tinha acabado de escrever esse texto. Ele me conta que pela primeira vez foi ao centro da cidade e que está feliz em São Paulo.
Amanhã cedo eles tomarão rumos diferentes. Seu irmão, Abdul, que vestia vermelho e verde naquela terça-feira, parte em viagem. De ônibus, junto com um grupo de amigos, ruma sentido Equador.“Ele vai tentar os Estados Unidos”.
Le Petit deverá finalmente ir para Cumbica recuperar sua bagagem que estava detida desde sua chegada.